INCENTIVO AO CÚ

(07/05/2003)

(Texto publicado no extinto tablóide O SARRAFO que era publicado pelos grupos que integravam o movimento Arte Contra a Barbárie)

Até neste pequeno e quase insignificante tablóide, onde nos juntamos pelas afinidades, mais éticas do que propriamente artísticas, as discórdias dão o tom quando o assunto é Incentivo à Cultura .

No nosso caso a fome do momento é a bem vinda Lei do Fomento, para a qual também botamos bastante fermento. Vamos ao tormento. Discute-se, entre outras coisas, a validade da continuidade do apoio em duas edições seguidas. Vamos mais longe e defendemos inclusive o fomento permanente a alguns artistas que já provaram ao longo de anos a sua capacidade produtiva, caso do Teatro Oficina, de nós  signatários deste periódico, grupo Tapa etc. Como critério de avaliação a própria obra e a repercussão na sociedade.

Todos nós merecemos um momento Antunes Filho. É muito cruel a cada ano que se inicia recomeçarmos do zero e de novo sermos obrigados, com o pires na mão,  a correr atrás dos famigerados editais. Note bem que não estamos falando de patrocínios vultosos. Somos muito baratos e nos contentamos e nos calamos com muito pouco. Vivemos num país onde o sucesso, reconhecimento, talento não são  cumulativos. A cada novo ano um recomeço. Oferecemos como contrapartida para a Lei do Fomento muito mais do que seria necessário, meio que como culpa por termos conseguido o dinheiro. Somos honestos e éticos demais, ainda bem, pois gastamos o que ganhamos apenas em trabalho, sem nada acumular, nos dando salários muito abaixo do merecido, sempre achamos ótimo uns $2.500 reais por mês, nos esquecendo que temos status de alto executivos e q por merecimento poderíamos sim, sem culpa  e sem dor nos equipararmos no mínimo a um deputadinho estadual e termos nossa renda mínima fixada em $ 10.0000 . Duvido que algum dos grupos fomentados tenha se dado salários superiores ao aqui citado. Porquê a grita? Uma pecinha normal com algum medalhão capta normalmente de instituições públicas, via Rouanet, algo em torno de 1 milhão para montagens simples. Alguns imaginam q grupos como Tapa, Pia Fraus, Parlapatões estão ricos por sempre terem apoio de patrocinadores. Na primeira edição do Fomento todos achavam que também estávamos contemplados!!! A verdade é que mesmo quando recebemos patrocínio, como o da Brasil Telecom, (uma das raras empresas com clareza, critério e bom senso no que tange a patrocínio e que, por incrível que pareça, nos procurou para oferecer ajuda) otimizamos de tal forma estes recursos, que nada sobra no fundo de caixa. Má administração? Não. Realidade. Exercemos uma atividade que em 90% dos casos é deficitária. Mesmo lotando nossas salas de espetáculo não cobrimos o valor das despesas. É completamente equivocada esta idéia que estamos de cofre cheio e sem problemas. O fato é q nosso maior valor é o trabalho, e mesmo sem dinheiro algum colocamos os espetáculos em cartaz. Ao longo destes 12 anos de grupo tivemos os seguintes patrocínios: Premio Estímulo- Zèrói, Lei Mendonça- Piolim, Premio Estímulo- Pantagruel, Premio Coca Cola- De Cá Pra Lá. E produzimos 20 espetáculos! Em muitos casos ppp@, U Fabuliô, AS Nuvens, Sardanapalo, produções de porte médio, zerando nossa poupança. Segue-se para maior clareza o valor do patrocínio em dólar, o total arrecadado pelas bilheterias e cachês . No caso do fomento que é uma luta dos grupos de São Paulo, não precisamos agir com pudor. ‘É mais q normal repetir sim a premiação para Oficina, Central do Circo. Os caras alugam um galpão investem um monte na implantação de um projeto e ele vai durar apenas 4 meses! O projeto é bom. O ideal é  que você, eterno reclamão, reveja teu projeto. Sabemos que muita merda é inscrita, sem qualquer tipo de conceito mais profundo, apenas com o intuito de dar uma salvadinha na pátria. Existe uma comissão que analisa e seleciona, escolhida por nós!!! E esta comissão tem lá os critérios dela que devem ser respeitados. Goste-se ou não. Na primeira edição não fomos selecionados apesar de apresentarmos um projeto muitíssimo semelhante ao de agora, único aprovado por unanimidade de votos. Vamos gritar, protestar? Não! Vamos trabalhar. A Lei é muito boa sim mas a verba, apesar de enorme comparativamente às carências do país,  é bem modesta e não resolve nossos problemas. Ela banca apenas o período de vigência do projeto aprovado. Se meu projeto é de um ano, e isso é o que normalmente ocorre , é claro que nem vou entrar no próximo edital. Mas se é semestral normal que entre, normal que ganhe. Precisamos ampliar nosso mercado para aí sim, dependermos menos deste apoio. Mas estamos longe disso.

                                                 

 

 

 

 DIA DO CIRCO

 

Prá começo de conversa, ou de escrita, eu, por princípio e por escolha, ODEIO, prá não dizer ¨ODÍO¨, os dias  de ou do ou da, e até mesmo dos e das, pais e mães inclusos. Estes, os piores, pensados quase que exclusivamente pelo e para o  puro comércio. E como funciona! Tanto que sempre compro o presentinho… E agora me pedem um texto sobre o dia do….. humorista!!?? Vou inventar o dia de mandar todos os dias  À MERDA!  Eu nem sabia que esse dia, o do humorista, existia. Já me bastava a confusão entre o dia do circo e dia do teatro, ambos dia 27 de março. Prá piorar, a data do dia do circo foi escolhida por ser o dia de nascimento do palhaço Piolim, ou seja  este deveria ser o dia do palhaço, que é 10 de dezembro. E além do dia do teatro tem o dia do ator. Realmente vamos ter que adotar um novo calendário já que 366 dias serão poucos para dar conta das infindáveis categorias a serem contempladas com seus dias específicos. Ainda mais porque eles inventam dias dos sinônimos! Pode pesquisar: deve com certeza existir o dia do Comediante, o dia do Piadista, vão inventar o dia do Stand Up e da Video Cassetada. Não dá. Decidi: não vou falar do dia do Humorista! Ufa. Me livrei. Até porque ainda não entendemos os limites e as diferenças entre comediantes, humoristas, palhaços, clowns, arlequins, mímicos, repentistas, contadores de piada, bonecos, macacos, hienas. Desejo apenas um bom dia eterno a todos que estão me lendo e informar que o HUMOR, com toda sua amplitude, sobretudo o mau-humor, é parte fundamental e primordial da vida, do nosso dia a dia, junto com o drama, a tragédia, o gozo, o êxtase. Aos muitos que discordam deste pensamento e que continuam desprezando a COMÉDIA, eu repito que não adianta adiar esta teimosia pois dia chegará, para todos nós, que a moça da foice vai nos pegar, nossas carninhas vão evaporar e vai sobrar apenas, mesmo que enterradinha a sete palmos, nossa linda caveirinha com todos nossos dentes rindo eternamente de tudo aquilo que nós levamos tão a sério ao longo da existência. Viva o verdadeiro dia do juízo final: o do Sorriso final. Viva os dias vivos!

 

P.S.- A título de esquecimento, me esqueci de fato quem me encomendou esse texto, se alguém lembrar me lembre por favor. Pode ter sido para o Site da SP Escola.

 

 

 

DIÁLOGOS COM A MORTE

 

(Encomenda do Hector Babenco, e agora vou precisar estender esse parêntesis, se bem que esse assunto mereceria umas páginas especiais e isso o farei posteriormente pois a figura é grande. O Hector me deixou um maravilhoso recado me pedindo para escrever um texto sobra a morte, fez isso com vários amigos, pois estava debruçado sobre o roteiro de seu derradeiro filme, Meu Amigo Hindu, onde trataria justamente da doença e da proximidade com a morte. Pra minha vaidade ele adorou o texto, mas eu a trocaria facilmente por mais anos de convívio com essa extraordinária pessoa)

 

Na primeira vez em que tive um diálogo com a dita cuja, A MORTE, eu ainda vivia em ambiente líquido, flutuando espremido na barriga da minha mãe, com uma cordão me prendendo pelo umbigo. Aliás, prá que me amarrar, não tinha como eu me perder ali dentro ou afundar, eu estava cercado de intestino, pulmão, coração. E a conversa não foi bem um diálogo, pois sempre que eu abria a boca um monte de líquido entrava e me impedia de emitir qualquer murmúrio. Foi um diálogo de pensamento ou talvez de telepatia, até porque a escuridão ali dentro também era absurda. O nome dela então era MECÔNIO. Feio né?

 

MECÔNIO: E aí pequeno feto, está pronto para enfrentar a luz? Parabéns, você resistiu bem até aqui. Passou ileso pelas 8 primeiras semanas, quando muitas mães perdem seus embriões. E ainda superou aquela batida de carro que a tua futura mamãe, já de oito meses, com a carteira de motorista cassada, deu atrás daquele porsche, ditou o telefone do teu pai pro playboy e saiu feito louca, com o radiador furado, guiando rumo ao hospital, achando que ia te abortar. E o pobre coitado do teu pai, fora do país, já culpado com a ausência mas necessitado do dinheiro, soube do ocorrido pelo motorista do porsche! E tua mãe não atendia o telefone. Santo Tom Jobim: ¨Nenhuma situação é tão complicada, que uma mulher não possa piorá-la ¨. Nesse dia eu estava juntinho com ele, mas ele se mostrou bem forte. E você também, nem assim, com o volante da direção te dando aquela pancada na cabeça, me chamou!

EU: Chamar prá que? Não te conheço! (RI) Você tem cara de cocô!

MECÔNIO: É isso mesmo que sou, e saí de dentro você. Me come.

EU: Comer cocô, tá maluco! Eu vou é dar o fora daqui, já demorei demais! Sai prá lá. Olha ali, uma janelinha! Tchaaaau.

 

E aí comecei a me mexer, dar umas cabeçadas, empurrar aquele cocô prá fora quando, de repente, encontrei ELA de novo, agora com outro nome: BUCETA. O diálogo desta vez foi mais tenso.

 

BUCETA: Fica aí dentro filho da puta, a vida aqui fora é dura, não vai achando que é só luz não, ar é foda.

EU: Abre essa boca sua raspadinha. Porque você ficou careca, achou que ia ser cesária? Se liga, quer moleza come esse cocozinho aí que não tem osso. Vamos abrindo vai, para de me impedir. Deixa eu respirar porra! Já enjoei desse líquido amniótico, quero sentir o ar puro, refrigerado dessa mãeternidade.

BUCETA: Minha função é essa, te mostrar que a vida aqui fora é dura, que para conseguir as coisas tem que lutar! Desiste enquanto é tempo. Fica aí na escuridão eterna, continua dormindinho.

EU:  Nada disso. Vou te empurrar e te arreganhar tanto que o teu clitóris vai beijar o umbigo. Vai, para de resistir, sente as contrações da gorda. Opa! De quem é essa mão me ajudando! Devagaaaar, não puxa meus poucos cabelinhos. Viva! Tô fora! Chuuuuuupa buceta!

 

Aí foi tranquilo, mão suave da obstetra, tirou umas gosmas da minha cara, me deu um tapinha gostoso na bunda, dei uma tossidinha, uma choradinha e senti o ar entrando, delícia. Nesse mesmo instante A OUTRA voltou, travestida de homem. Pensa que me engana? O nome? PAI.

 

PAI: Me dá aqui doutora, deixa eu segurar o meu filho, que pintão hem! Ôpa, é liso, está escorregando, meu Deus, e agora?

EU: Me segura!!! Pai de uma puta!!!! Quer que eu me esborrache nesse chão esterilizado? Deixa de ser atrapalhado.

PAI: Me perdoe filhinho, foi a emoção, a ansiedade, a sensação de impotência. Não poder parir é muito duro para um homem, você vai aprender isso. Vamos pro banhinho vamos. Ôpa! Socorro ele deslizou de novo!

EU: Cuidado seu merda! Estou me afogando, não sou mais anfíbio, água agora mata! O que aliás é uma falha do todo poderoso: eu devia sair já sabendo nadar e podia muito bem continuar anfíbio. Foram nove meses de treinamento prá que?

 

Passado o risco deste pai desajeitado tive uma infância feliz e sem percalços, salvo uma ou outra distração dos meus pais, ora uma babá desatenta me deixando segurar uma faca, ora uma avó distraída deixando uma janela aberta, uma escapadinha pra rua com o carro freando em cima, uns tombos de bicicleta…Mas nada que gerasse um diálogo com a MALDITA. E fui bem até a adolescência quando comecei a namorar uma menina que gostava de Rimbaud, Silvia Plath, Ana Cristina Cesar, Florbela Espanca. E só ouvia Jim Morrison, Nirvana, Amy, Janis, Jimmy! Quando ela me trocou pelo professor de física e eu me vi sem meu primeiro amor, ELA apareceu de novo com o nome de WERTHER.

WERTHER: Oi eu sou o Werther, mas pode me chamar de Swann. Vim recuperar o tempo perdido. Viu só em que merda você se meteu, não era melhor ter ficado lá dentro?

EU: Realmente a vida é uma bosta, as mulheres são todas umas putas, só minha mãe presta, dar o cú dói muito, estudar é um saco. Chega! Quero morrer, quero ir embora daqui. (PAUSA) Mas não quero sofrer. Tem um jeito?

WERTHER: Pula desse janelão. Vinte e seis andares costuma ser fatal.

EU: Tem que ter muita coragem, me dá vertigem só de olhar, não consigo. Tem outro jeito? Como é que é essa coisa de overdose? Se bem que eu ainda não tenho 27 anos…

WERTHER: Você tem alguma coisa em cima, pó, crack, herô?

EU: Nada, sou limpo. Tem uns whisky do meu pai, pinga, catuaba…

WERTHER: Amador… Teu chuveiro é a gás?

EU: Não, aquecimento central, casa de rico. Antibiótico com pinga e catuaba, mata? E se misturar com um miojo?

WERTHER: Vai te dar uma puta dor de barriga e ainda vão te enfiar uma mangueira no rabo prá fazer uma limpeza. Deixa eu pensar… Já sei! Vamos embora prá cozinha!

EU: Cozinha?Não estou com fome, porra. Eu quero morrer!

WERTHER: Não sou mestre cuca, eu sou a MORTE! Enfia tua cabeça no forno, liga o gás e fecha a porta. É rapidinho e indolor.

EU: Mas o cheiro é meio ruim… Qual é o botão do forno? Tem um frango assado pela metade, minha cabeça é grande, não cabe. (SOM DE CAMPAINHA) A empregada chegou. Fodeu. Cai fora seu merda, incompetente.

 

Esquentei aquele resto de frango, dei uma trepada antológica com a empregada, a melhor boquete da minha vida, e segui uma vida normal, bem sucedido profissionalmente. Casei algumas vezes, sempre a mesma merda, tive filhos, de novo a dialética, vantagens e desvantagens. Mas nossa razão sempre justifica tudo. Me encontrei com ELA outras vezes, mas sempre no campo da literatura e filosofia. Quando cheguei aos sessenta, e tive uma outra filha, no meu sexto casamento, ELA veio numa noite, linda como uma Bardot naquela idade de quando veio a Búzios. Não falou o nome. Eu a chamei de BRIGITE. Eu tinha acabado de sentir uma fortíssima pontada no peito, tudo ficou preto. Aí ouvi a voz:

 

BRIGITE: Seis casamentos em sessenta anos…. Meio inconstante heim… Dá quase um por década.

EU: Não casei com 10 anos de idade. A média é 1 a cada 6,666 anos. Não arredondei, é o número da besta: a mulher. (PAUSA) Brincadeira. (SEDUTOR) É que na verdade eu nunca conheci nenhuma deusa como você.

BRIGITE: Você deve dizer isso prá todas. (ABRINDO O BOTÃO DA BLUSA, E DEIXANDO APARECER PARTE DOS MARAVILHOSOS SEIOS) Mas eu gosto do seu jeito.

EU:  Espera aí, devagar, eu acabei de ter uma filha linda, estou preocupado com o futuro dela, sou um pai-vô babão, ela não pode ficar órfã, não fiz nenhum testamento, já acabei de pagar meu carro novo. Foi só uma dor no peito, meu braço não está dormente, estou bem. Vou procurar um Geriatra, ou melhor uma geriatra, só como prevenção. Eu sempre preferi as médicas, é uma mania, se bem que nunca consegui uma Proctologista mulher, deve ser porque não pode deixar crescer as unhas, vira sapata porra!  Minha analista me disse que eu devia assistir os filmes do Woody Allen….

 

 

BRIGITE: Chega meu anjo, para de falar um pouco, vem, chega mais perto. (DEIXA OS LÁBIOS ENTRABERTOS, A LÍNGUA PASSEANDO SUAVE, OS OLHOS BOIANDO)

 

EU: Você é linda, esse teu olhar… Isso é hipnose? (OLHA FIXAMENTE O DECOTE) Essas suas unhas!  Você existe mesmo?

BRIGITE: Ué, não estou aqui?  E você não está com teu pau duro?

EU: É, realmente, tá durinho… Mas tudo pode ser só imaginação. Quer saber, eu não acredito em você.  A vida acaba e pronto!

BRIGITE: E porque eu estaria aqui?

EU: Sei lá… Fruto da minha imaginação, remédio prá dormir, antidepressivo…Muito remédio, tédio, pouco assédio, nem a pequena morte eu estou tendo… Sabe como é que é, mulher grávida e agora amamentação, ou seja,nada de sexo. Estou carente… Você sabe o que é a pequena morte, la petit mort , Brigite?

BRIGITE: Brigite?

EU: É ué, não é esse teu nome?

BRIGITE: Pode ser…

EU: Então, responde! Sabe o que é, a pequena morte?

BRIGITTE: Claro, meu bem, o orgasmo.

EU: É isso aí sabidona!  Mas espera um pouco, você trepa? Com quem? Com a vida é que não é, ia nascer o quê: um vegetativo?

BRIGITE: Minhas trepadas são definitivas, fatais, inesquecíveis…

EU: Está aumentando meu tesão sua puta. ( FICA EM DÚVIDA) Mas se eu trepar eu morro? Posso fazer um tantra? Sem ejaculação?

BRIGITTE: Vem, tenta o tantra. Acho difícil você conseguir.

EU: Vai me dizer que você faz pompoarismo? Aí é covardia porra, eu gozo mesmo, em segundos.

BRIGITTE: Deixa a pequena morte de lado, vem prá grande. Me dá tua glande. (SE APROXIMA)

EU: Nooossa, essa foi brochante, você como poetisa é uma merda, puta rima ridícula. (ELA ABRE A BRAGUILHA DELE) Tira a mão daí.

 

Bem nessa hora eu acordei! É foda, sonho é uma merda, acaba sem te avisar! Tinha que ter um botão onde você pudesse fazer ele continuar, tipo segundo capítulo. Nunca mais vi a BRIGITE. Como era gostosa…Mas aí me lembrei dela hoje em dia, aquele trubufu, preocupada com as baleias… Me bateu uma tristeza, uma percepção do nada que somos, ou da merda que viraremos.

E os anos passaram, minha última mulher arrumou outro, minha filha caçula cresceu e como minhas outras filhas, sempre mulheres, estão soltas no mundo, vez por outra me chamam no Skype. E agora a VÉIA tem aparecido sempre, naquela infeliz roupa preta, com a foice na mão, com aquele ar de enfado me dizendo que chegou a minha hora. O diálogo é aquele comum, o mais batido de todos:

 

EU: Você de novo? Nesse trapo preto? Já te vi em criações melhores hem!! Plagiou o Bergman? (SILÊNCIO). Tem visto a Brigite? (SILÊNCIO) Não vai falar? Responde porra! Detesto este teu ar de superioridade, esta tua certeza implacável me dizendo:

Chegou a tua hora. Você não é nenhum DEUS, seu traveco. Você é um nada, um fim, a morte! Depois de você, não tem porra nenhuma! É como tirar o fio da tomada.

A MORTE: Tem certeza?

EU: Puta pergunta idiota. Você não lê não? Acabaram-se as certezas. Quem tem certeza de alguma coisa, o que é uma certeza?

A MORTE: Eu sou uma. Eu sou o fim.

EU: Que pretensão! Se enxerga! Que fim o catzo! E se eu for divino? Ou tiver uma crença? Hem? Acabou você. Estarei no paraíso, no nirvana, ou encarnado num cachorro, num pavão, num marlim azul. Engraçado, ninguém nunca pensa em encarnar nos peixes, só porque é carne branca! Quer saber, já fui sacerdote numa vida passada, uma cartomante me disse.

A MORTE: Elas sempre falam isso. Todo mundo já foi sacerdote em outras vidas.

EU: Eu acredito na física quântica, vou virar poeira cósmica e viver só energia dentro de um buraco negro, um quase quasar, vou procurar o Gagarin lá e gritar ¨É azul, é azul¨, eu sempre quis ser astronauta.

(ELA CHEGA MAIS PERTO)

A MORTE: Vem, chega mais perto,não vai doer nada. Me abraça.

EU: Sai prá lá. E larga essa foice, me lembra o Stalin, puta símbolo ridículo. Eu não sou um pé de milho, essa metáfora com a ¨colheita¨ é ridícula. Eu fui Rosacruz, meu átomo centelha divina vai direto pro campo de força. Esse corpinho aqui é só uma embalagem, um invólucro, um veículo.  Me deixa pensar na luz azul, é prá lá que eu preciso ir. Muitos me falaram da luz azul atrás da porta. O Spielberg mostrou isso num filme.

(ELA ENCOSTA NELE)

A MORTE: Sssssshhhhhhhh. Silêncio.

EU: Você é quentinha! Achei que era fria, gélida. Cadê teu olho?

A MORTE: Deita tua cabeça no meu colo. Viu como não dói nada, Qual a sensação.

(ELA VIRA BRIGITE, DEPOIS SUAS AVÓS, CADA UMA DE SUAS MULHERES, E POR FIM UMA LINDA CRIANÇA, QUE ACARICIA O ROSTO DELE)

EU: Não sei, é leve. Tá gostosinho. Eu estou vendo uma retrospectiva de toda minha vida, tipo aquelas da Globo, de fim de ano, numa edição rápida. Só que é ao contrário, da frente prá trás. Estou me sentindo quase um neném. Já foi, passou? Isso é morte? Tem outro nome?

A MORTE: Tem. AMOR.

EU: Só isso. Que simples. Eu estou gostando, quase gozando. E o pau nem está duro. Ui, gozei. Sem ejaculação. Mas estou me sentindo de novo dentro duma barriguinha quentinha. Está dando um soninho…Fica aí, não vai embora. Cadê você?

(ADORMECE)

 

 

FIM. FIM?

 

PASSEANDO EM NÚMEROS

(Esse texto escrevi quando decidi não estar no palco em nossa montagem do REI DA VELA. Ele foi publicado no Programa da peça que estreou no Sesc Santana)

 

Em 1993 estreei Sardanapalo, num Sesc perto de você. Era minha entrada no mundo mágico e louco dos Parlapatões, Patifes e Paspalhões, nessa época ainda um bebê, com 2 anos de idade e 4 espetáculos no currículo. Hoje, 25 anos depois, o Parlapatões, esse adulto de 27 anos, estreia sua produção de número 64, numa média insana de 2,4 espetáculos por ano, novamente num Sesc perto de você, obrigado, evoé!  a esse parceiro  tão constante. Estive em cena como palhaço em 48 destas 64 produções, como produtor em quase todas, e agora talvez você me procure no palco e se pergunte cadê o grandão dos 195 centímetros?  Ocorre que o grandão vai chegar logo logo aos 60… E agora as emoções, beirando o infinito, me impedem de continuar meu passeio por números, mas para responder a pergunta acima e justificar minha ausência acrescento meus 2 últimos números, prometo:  Aurora, 7  e Theo, 3.

Numa viagem a India com Helena, um indiano, pai tardio aos 54 anos, exibindo exultante sua filha Patrixia de 5 anos, me ensinou que “ter filhos é ter alguém a quem servir”. E eu, que filosoficamente nunca quis ter filhos me deixei amolecer, um pouco por aquilo, outro pelos apelos da jovem Helena, e eles vieram… E transformaram minha vida! E passei a servir a  3 ParlaPatrões! Mas a tarefa é árdua, e aparecem mais patrões: a SP Escola, o cinema e a TV, a yoga … e a idade vai chegando, o corpo pede menos velocidade. Buscando equilibrar um pouco tudo isso resolvi ficar por trás do Rei da Vela, de frente a essa dor no coração por perder a melhor parte: o desfrute da cena, o público. Por outro lado, curiosamente me sinto presente em cada adereço e figurino que chega, em cada gesto do elenco, em cada nota musical. E percebo que ao longo desses 27 anos construímos juntos algo que está acima da presença cênica de um palhaço:  o espírito parlapatônico. Ele está impregnado e pulsando naquele palco, e isso me contempla, conforta, realiza e, de alguma forma, me deixa mais leve. Me ajudou muito nessa decisão a compreensão, confiança e cumplicidade do meu multi-talentoso parceiro Hugo Possolo a quem deixo aqui expresso meu afeto e agradecimento profundos.  Agradeço ainda, de coração, a toda equipe de artistas envolvidos, não apenas nesse espetáculo mas nessa trajetória toda, frisando que o teatro não é só a arte do ator, é a artesania de um coletivo de pessoas abnegadas e apaixonadas, que acendendo velas, iluminam o caminho que pode nos ajudar a encontrar, ou pelo menos procurar juntos, a saída desse escuro túnel  que estamos atravessando. Viva a vela! Viva o Rei da Vela! Viva o teatro!

 

 

MERCADO CENTRAL

(Alguém, de novo a amnésia, me pediu um texto curto sobre gastronomia em SP)

 

E agora? Como escolher um só restaurante nesta nossa Demente Paulo, cidade que de sã tem tão pouco, mas que pelo menos neste quesito, restaurantes, pode   se orgulhar de uma gastrodiversidade tão vasta quanto amazônica, rara em outras grandes cidades do mundo e que até nos permite retornar, nem que seja apenas para uma refeição,  a uma sanidade momentânea. Ou enlouquecer de vez na hora de selecionar um lugar…  Como passar a colher e escolher uma só entre tantas opções? Poderia me restringir aos cinco apoiadores dos  Parlapatões selecionados a hashi ( os pauzinhos da culinária japa) justamente por suas qualidades: Pitanga, 1900, Eugenia, Kayomix e Posto 6. Mas ao degustar um estaria sendo injusto com os outros. O melhor é voltar às origens,  recorrer àquela fonte provedora que alimenta e sacia  a todos,  e aí minha escolha só podia cair neste verdadeiro mundo que é o Mercado Central de São Paulo, Meca inspiradora de nossos melhores chefes de cozinha,  com suas especiais especiarias e iguarias, generoso com todos os gostos e paladares possíveis, dos carnívoros aos frugívoros (meu caso).  Ali encontro tudo que preciso para sossegar o cereal killer que mora no meu estômago, e que, inspirado nos antigos, exige para cada dia da semana o seu correspondente  cereal, o seu correlato planeta. Aliás adoraria que alguém me explicasse porque só na nossa língua isto não ocorre, quem afugentou os planetas e deixou a feira no lugar? Que feira é essa que não tem primeira? Montag, Monday,Lundi, Lunes: dia da Lua, dia de comer arroz!   E em seguida dia de Marte (cevada), de Mercúrio (painço, para alimentar o pássaro que habita em nós), de Júpiter (centeio), de Vênus (aveia), de Saturno (milho, a soturna América do Norte) e do Sol (trigo, o pão nosso de cada dia, o dia de Deus). Mas como ninguém vai ter saco e paciência para decorar isso tudo o melhor é encher tuas sacolas vazias na melhor de todas as feiras da cidade: deixe-se levar pelo canto da sereia que passeia pelos ares do Mercado Central de São Paulo na rua da Cantareira, a nossa verdadeira primeira-feira da semana.