DIÁLOGOS COM A MORTE
(Encomenda do Hector Babenco, e agora vou precisar estender esse parêntesis, se bem que esse assunto mereceria umas páginas especiais e isso o farei posteriormente pois a figura é grande. O Hector me deixou um maravilhoso recado me pedindo para escrever um texto sobra a morte, fez isso com vários amigos, pois estava debruçado sobre o roteiro de seu derradeiro filme, Meu Amigo Hindu, onde trataria justamente da doença e da proximidade com a morte. Pra minha vaidade ele adorou o texto, mas eu a trocaria facilmente por mais anos de convívio com essa extraordinária pessoa)
Na primeira vez em que tive um diálogo com a dita cuja, A MORTE, eu ainda vivia em ambiente líquido, flutuando espremido na barriga da minha mãe, com uma cordão me prendendo pelo umbigo. Aliás, prá que me amarrar, não tinha como eu me perder ali dentro ou afundar, eu estava cercado de intestino, pulmão, coração. E a conversa não foi bem um diálogo, pois sempre que eu abria a boca um monte de líquido entrava e me impedia de emitir qualquer murmúrio. Foi um diálogo de pensamento ou talvez de telepatia, até porque a escuridão ali dentro também era absurda. O nome dela então era MECÔNIO. Feio né?
MECÔNIO: E aí pequeno feto, está pronto para enfrentar a luz? Parabéns, você resistiu bem até aqui. Passou ileso pelas 8 primeiras semanas, quando muitas mães perdem seus embriões. E ainda superou aquela batida de carro que a tua futura mamãe, já de oito meses, com a carteira de motorista cassada, deu atrás daquele porsche, ditou o telefone do teu pai pro playboy e saiu feito louca, com o radiador furado, guiando rumo ao hospital, achando que ia te abortar. E o pobre coitado do teu pai, fora do país, já culpado com a ausência mas necessitado do dinheiro, soube do ocorrido pelo motorista do porsche! E tua mãe não atendia o telefone. Santo Tom Jobim: ¨Nenhuma situação é tão complicada, que uma mulher não possa piorá-la ¨. Nesse dia eu estava juntinho com ele, mas ele se mostrou bem forte. E você também, nem assim, com o volante da direção te dando aquela pancada na cabeça, me chamou!
EU: Chamar prá que? Não te conheço! (RI) Você tem cara de cocô!
MECÔNIO: É isso mesmo que sou, e saí de dentro você. Me come.
EU: Comer cocô, tá maluco! Eu vou é dar o fora daqui, já demorei demais! Sai prá lá. Olha ali, uma janelinha! Tchaaaau.
E aí comecei a me mexer, dar umas cabeçadas, empurrar aquele cocô prá fora quando, de repente, encontrei ELA de novo, agora com outro nome: BUCETA. O diálogo desta vez foi mais tenso.
BUCETA: Fica aí dentro filho da puta, a vida aqui fora é dura, não vai achando que é só luz não, ar é foda.
EU: Abre essa boca sua raspadinha. Porque você ficou careca, achou que ia ser cesária? Se liga, quer moleza come esse cocozinho aí que não tem osso. Vamos abrindo vai, para de me impedir. Deixa eu respirar porra! Já enjoei desse líquido amniótico, quero sentir o ar puro, refrigerado dessa mãeternidade.
BUCETA: Minha função é essa, te mostrar que a vida aqui fora é dura, que para conseguir as coisas tem que lutar! Desiste enquanto é tempo. Fica aí na escuridão eterna, continua dormindinho.
EU: Nada disso. Vou te empurrar e te arreganhar tanto que o teu clitóris vai beijar o umbigo. Vai, para de resistir, sente as contrações da gorda. Opa! De quem é essa mão me ajudando! Devagaaaar, não puxa meus poucos cabelinhos. Viva! Tô fora! Chuuuuuupa buceta!
Aí foi tranquilo, mão suave da obstetra, tirou umas gosmas da minha cara, me deu um tapinha gostoso na bunda, dei uma tossidinha, uma choradinha e senti o ar entrando, delícia. Nesse mesmo instante A OUTRA voltou, travestida de homem. Pensa que me engana? O nome? PAI.
PAI: Me dá aqui doutora, deixa eu segurar o meu filho, que pintão hem! Ôpa, é liso, está escorregando, meu Deus, e agora?
EU: Me segura!!! Pai de uma puta!!!! Quer que eu me esborrache nesse chão esterilizado? Deixa de ser atrapalhado.
PAI: Me perdoe filhinho, foi a emoção, a ansiedade, a sensação de impotência. Não poder parir é muito duro para um homem, você vai aprender isso. Vamos pro banhinho vamos. Ôpa! Socorro ele deslizou de novo!
EU: Cuidado seu merda! Estou me afogando, não sou mais anfíbio, água agora mata! O que aliás é uma falha do todo poderoso: eu devia sair já sabendo nadar e podia muito bem continuar anfíbio. Foram nove meses de treinamento prá que?
Passado o risco deste pai desajeitado tive uma infância feliz e sem percalços, salvo uma ou outra distração dos meus pais, ora uma babá desatenta me deixando segurar uma faca, ora uma avó distraída deixando uma janela aberta, uma escapadinha pra rua com o carro freando em cima, uns tombos de bicicleta…Mas nada que gerasse um diálogo com a MALDITA. E fui bem até a adolescência quando comecei a namorar uma menina que gostava de Rimbaud, Silvia Plath, Ana Cristina Cesar, Florbela Espanca. E só ouvia Jim Morrison, Nirvana, Amy, Janis, Jimmy! Quando ela me trocou pelo professor de física e eu me vi sem meu primeiro amor, ELA apareceu de novo com o nome de WERTHER.
WERTHER: Oi eu sou o Werther, mas pode me chamar de Swann. Vim recuperar o tempo perdido. Viu só em que merda você se meteu, não era melhor ter ficado lá dentro?
EU: Realmente a vida é uma bosta, as mulheres são todas umas putas, só minha mãe presta, dar o cú dói muito, estudar é um saco. Chega! Quero morrer, quero ir embora daqui. (PAUSA) Mas não quero sofrer. Tem um jeito?
WERTHER: Pula desse janelão. Vinte e seis andares costuma ser fatal.
EU: Tem que ter muita coragem, me dá vertigem só de olhar, não consigo. Tem outro jeito? Como é que é essa coisa de overdose? Se bem que eu ainda não tenho 27 anos…
WERTHER: Você tem alguma coisa em cima, pó, crack, herô?
EU: Nada, sou limpo. Tem uns whisky do meu pai, pinga, catuaba…
WERTHER: Amador… Teu chuveiro é a gás?
EU: Não, aquecimento central, casa de rico. Antibiótico com pinga e catuaba, mata? E se misturar com um miojo?
WERTHER: Vai te dar uma puta dor de barriga e ainda vão te enfiar uma mangueira no rabo prá fazer uma limpeza. Deixa eu pensar… Já sei! Vamos embora prá cozinha!
EU: Cozinha?Não estou com fome, porra. Eu quero morrer!
WERTHER: Não sou mestre cuca, eu sou a MORTE! Enfia tua cabeça no forno, liga o gás e fecha a porta. É rapidinho e indolor.
EU: Mas o cheiro é meio ruim… Qual é o botão do forno? Tem um frango assado pela metade, minha cabeça é grande, não cabe. (SOM DE CAMPAINHA) A empregada chegou. Fodeu. Cai fora seu merda, incompetente.
Esquentei aquele resto de frango, dei uma trepada antológica com a empregada, a melhor boquete da minha vida, e segui uma vida normal, bem sucedido profissionalmente. Casei algumas vezes, sempre a mesma merda, tive filhos, de novo a dialética, vantagens e desvantagens. Mas nossa razão sempre justifica tudo. Me encontrei com ELA outras vezes, mas sempre no campo da literatura e filosofia. Quando cheguei aos sessenta, e tive uma outra filha, no meu sexto casamento, ELA veio numa noite, linda como uma Bardot naquela idade de quando veio a Búzios. Não falou o nome. Eu a chamei de BRIGITE. Eu tinha acabado de sentir uma fortíssima pontada no peito, tudo ficou preto. Aí ouvi a voz:
BRIGITE: Seis casamentos em sessenta anos…. Meio inconstante heim… Dá quase um por década.
EU: Não casei com 10 anos de idade. A média é 1 a cada 6,666 anos. Não arredondei, é o número da besta: a mulher. (PAUSA) Brincadeira. (SEDUTOR) É que na verdade eu nunca conheci nenhuma deusa como você.
BRIGITE: Você deve dizer isso prá todas. (ABRINDO O BOTÃO DA BLUSA, E DEIXANDO APARECER PARTE DOS MARAVILHOSOS SEIOS) Mas eu gosto do seu jeito.
EU: Espera aí, devagar, eu acabei de ter uma filha linda, estou preocupado com o futuro dela, sou um pai-vô babão, ela não pode ficar órfã, não fiz nenhum testamento, já acabei de pagar meu carro novo. Foi só uma dor no peito, meu braço não está dormente, estou bem. Vou procurar um Geriatra, ou melhor uma geriatra, só como prevenção. Eu sempre preferi as médicas, é uma mania, se bem que nunca consegui uma Proctologista mulher, deve ser porque não pode deixar crescer as unhas, vira sapata porra! Minha analista me disse que eu devia assistir os filmes do Woody Allen….
BRIGITE: Chega meu anjo, para de falar um pouco, vem, chega mais perto. (DEIXA OS LÁBIOS ENTRABERTOS, A LÍNGUA PASSEANDO SUAVE, OS OLHOS BOIANDO)
EU: Você é linda, esse teu olhar… Isso é hipnose? (OLHA FIXAMENTE O DECOTE) Essas suas unhas! Você existe mesmo?
BRIGITE: Ué, não estou aqui? E você não está com teu pau duro?
EU: É, realmente, tá durinho… Mas tudo pode ser só imaginação. Quer saber, eu não acredito em você. A vida acaba e pronto!
BRIGITE: E porque eu estaria aqui?
EU: Sei lá… Fruto da minha imaginação, remédio prá dormir, antidepressivo…Muito remédio, tédio, pouco assédio, nem a pequena morte eu estou tendo… Sabe como é que é, mulher grávida e agora amamentação, ou seja,nada de sexo. Estou carente… Você sabe o que é a pequena morte, la petit mort , Brigite?
BRIGITE: Brigite?
EU: É ué, não é esse teu nome?
BRIGITE: Pode ser…
EU: Então, responde! Sabe o que é, a pequena morte?
BRIGITTE: Claro, meu bem, o orgasmo.
EU: É isso aí sabidona! Mas espera um pouco, você trepa? Com quem? Com a vida é que não é, ia nascer o quê: um vegetativo?
BRIGITE: Minhas trepadas são definitivas, fatais, inesquecíveis…
EU: Está aumentando meu tesão sua puta. ( FICA EM DÚVIDA) Mas se eu trepar eu morro? Posso fazer um tantra? Sem ejaculação?
BRIGITTE: Vem, tenta o tantra. Acho difícil você conseguir.
EU: Vai me dizer que você faz pompoarismo? Aí é covardia porra, eu gozo mesmo, em segundos.
BRIGITTE: Deixa a pequena morte de lado, vem prá grande. Me dá tua glande. (SE APROXIMA)
EU: Nooossa, essa foi brochante, você como poetisa é uma merda, puta rima ridícula. (ELA ABRE A BRAGUILHA DELE) Tira a mão daí.
Bem nessa hora eu acordei! É foda, sonho é uma merda, acaba sem te avisar! Tinha que ter um botão onde você pudesse fazer ele continuar, tipo segundo capítulo. Nunca mais vi a BRIGITE. Como era gostosa…Mas aí me lembrei dela hoje em dia, aquele trubufu, preocupada com as baleias… Me bateu uma tristeza, uma percepção do nada que somos, ou da merda que viraremos.
E os anos passaram, minha última mulher arrumou outro, minha filha caçula cresceu e como minhas outras filhas, sempre mulheres, estão soltas no mundo, vez por outra me chamam no Skype. E agora a VÉIA tem aparecido sempre, naquela infeliz roupa preta, com a foice na mão, com aquele ar de enfado me dizendo que chegou a minha hora. O diálogo é aquele comum, o mais batido de todos:
EU: Você de novo? Nesse trapo preto? Já te vi em criações melhores hem!! Plagiou o Bergman? (SILÊNCIO). Tem visto a Brigite? (SILÊNCIO) Não vai falar? Responde porra! Detesto este teu ar de superioridade, esta tua certeza implacável me dizendo:
Chegou a tua hora. Você não é nenhum DEUS, seu traveco. Você é um nada, um fim, a morte! Depois de você, não tem porra nenhuma! É como tirar o fio da tomada.
A MORTE: Tem certeza?
EU: Puta pergunta idiota. Você não lê não? Acabaram-se as certezas. Quem tem certeza de alguma coisa, o que é uma certeza?
A MORTE: Eu sou uma. Eu sou o fim.
EU: Que pretensão! Se enxerga! Que fim o catzo! E se eu for divino? Ou tiver uma crença? Hem? Acabou você. Estarei no paraíso, no nirvana, ou encarnado num cachorro, num pavão, num marlim azul. Engraçado, ninguém nunca pensa em encarnar nos peixes, só porque é carne branca! Quer saber, já fui sacerdote numa vida passada, uma cartomante me disse.
A MORTE: Elas sempre falam isso. Todo mundo já foi sacerdote em outras vidas.
EU: Eu acredito na física quântica, vou virar poeira cósmica e viver só energia dentro de um buraco negro, um quase quasar, vou procurar o Gagarin lá e gritar ¨É azul, é azul¨, eu sempre quis ser astronauta.
(ELA CHEGA MAIS PERTO)
A MORTE: Vem, chega mais perto,não vai doer nada. Me abraça.
EU: Sai prá lá. E larga essa foice, me lembra o Stalin, puta símbolo ridículo. Eu não sou um pé de milho, essa metáfora com a ¨colheita¨ é ridícula. Eu fui Rosacruz, meu átomo centelha divina vai direto pro campo de força. Esse corpinho aqui é só uma embalagem, um invólucro, um veículo. Me deixa pensar na luz azul, é prá lá que eu preciso ir. Muitos me falaram da luz azul atrás da porta. O Spielberg mostrou isso num filme.
(ELA ENCOSTA NELE)
A MORTE: Sssssshhhhhhhh. Silêncio.
EU: Você é quentinha! Achei que era fria, gélida. Cadê teu olho?
A MORTE: Deita tua cabeça no meu colo. Viu como não dói nada, Qual a sensação.
(ELA VIRA BRIGITE, DEPOIS SUAS AVÓS, CADA UMA DE SUAS MULHERES, E POR FIM UMA LINDA CRIANÇA, QUE ACARICIA O ROSTO DELE)
EU: Não sei, é leve. Tá gostosinho. Eu estou vendo uma retrospectiva de toda minha vida, tipo aquelas da Globo, de fim de ano, numa edição rápida. Só que é ao contrário, da frente prá trás. Estou me sentindo quase um neném. Já foi, passou? Isso é morte? Tem outro nome?
A MORTE: Tem. AMOR.
EU: Só isso. Que simples. Eu estou gostando, quase gozando. E o pau nem está duro. Ui, gozei. Sem ejaculação. Mas estou me sentindo de novo dentro duma barriguinha quentinha. Está dando um soninho…Fica aí, não vai embora. Cadê você?
(ADORMECE)
FIM. FIM?